Chuva em vermelho


Nada na filosofia que tenta reger os fundamentos da Terra e dos céus pode explicar o que acaba de me acontecer.
Ela não tinha razão nenhuma para agir dessa forma.
O que eu fiz de errado? Por que acabar algo que estava indo assim, tão bem?
Saímos para jantar, e então ela diz na minha cara que não dá pra seguir em frente, que acabou. Tentei entender, pedi explicações, mas ela só me deu respostas vagas. Paguei a conta, e deixei-a lá, sozinha.
Só foi o tempo de atravessar a rua e uma chuvona começou a cair.
Parecia que o céu queria me castigar por alguma coisa que eu não sabia ter feito. Talvez fosse pelo mesmo motivo que ela tinha terminado nosso namoro.
Saí andando pelas ruas, debaixo daquela chuvarada. Minha cabeça estava a mil. As coisas não podiam acabar dessa forma.
Mas foi atravessando o semáforo da Rua XV que a vi.
O tempo congelou.
Os carros não andavam. A chuva não mais caía. Os transeuntes mantiveram suas posições, com pernas levantadas em passos iniciados.
Tudo tinha perdido o seu brilho.
Exceto ela.
Uma mulher alta envolta num sobretudo preto elegantíssimo, com sapatos vermelhos, unhas vermelhas, batom vermelho e escondendo-se da chuva sob uma sombrinha vermelha.
Eu não podia ver seus olhos, encobertos pela sombrinha. E todo o mais estava apagado pela escuridão, somente o vermelho vibrante dos seus acessórios destacava-se em meio àquela sombria atmosfera de sábado à noite!
O tempo estava parado. E meus olhos perscrutavam cada centímetro daquela mulher misteriosa. Eu queria saber tudo sobre ela.
Quem era. De onde vinha. Pra onde ia.
Por que mexia comigo dessa maneira.
Queria ver seus olhos. Qual seria a cor dos olhos daquela...
Deusa que tinha saído do seu Olimpo apenas para me buscar.
Anjo que tinha descido dos céus para me ver.
Demônio que tinha subido das profundezas para me seduzir.
O que se esconderia sob aquela sombrinha vermelha?
Como seriam seus cabelos?
O que aquela boca sedutora revelaria?
Por que tinha mãos tão delicadas e tenras?
Seu pescoço nu parecia requisitar por carinho...

E então, enquanto eu estava perdido nos meus pensamentos, a admirá-la, o tempo voltou a passar, e passou todo de uma vez. Um carro buzinava insistentemente para que eu saísse da faixa, pois o semáforo estava aberto para ele, e eu atrapalhava o trânsito.
Corri para a calçada à qual me dirigia quando tudo aconteceu.
Voltei-me para todos os lados, mas não a encontrei.
Olhei uma segunda vez.
E uma terceira.
E ainda uma quarta.
Não havia sinal dela.
O que acontecera?
Teria eu me perdido em pensamentos por tempo suficiente para ela se afastar assim tão rapidamente?
Teria eu imaginado a existência daquela criatura sagrada?
Como pude não perceber o tempo passar?

A chuva continuava grossa, batendo no meu corpo violentamente, auxiliada pelo vento.
Eu estava parado na calçada da Rua XV, quase uma da manhã.
Abri meus braços e senti a chuva a castigar-me.
E subitamente eu senti que precisava ter Anne de volta.
Então pus-me a correr desesperadamente para a casa dela.
Eu amava aquela garota.
A mulher de adornos vermelhos devia ser um anjo. Que desceu dos céus para me fazer enxergar que Anne é a mulher da minha vida e é com ela que eu devo viver o resto dos meus dias.
E sob a chuva eu corri. Numa fria noite de outono. Em busca do meu destino.

Na casa de Anne, abri o portão desesperadamente e bati na porta como um louco. Anne apareceu, de robe, e eu caí de joelhos aos seus pés.
Então olhando para seu rosto, tudo eu compreendi.
Aquela sombrinha vermelha escondia o rosto da minha Anne. Era ela, de sobretudo preto e adornos vermelhos. Aqueles lábios carnudos, o pescoço convidativo e as mãos tenras e jovens. Fora Anne o tempo todo. A minha dama. O mistério que desvendarei dia após dia pelo resto da minha vida.


(inspirado na imagem acima, sugerida por Mariana Sathie)

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