1996

Ela se chamava Julia.
Tivemos um intenso relacionamento e quase chegamos a nos casar, mas um fator inesperado nos afastou bruscamente.
O fato se deu na inesquecível e quente tarde dum longínquo agosto de 96. Abri a janela e me deparei com seu quarto sem móveis. Olhei para baixo e consegui ver o caminhão de mudanças recolhendo os pertences. Saí pela porta correndo e pressionei repetidas vezes o botão do elevador. Quanto mais pressa temos, mais os elevadores demoram parados em outros andares. Ou será apenas uma impressão? Bem, não aguentei esperar e pus-me a descer os cinco lances de escada apressadamente. Eu saltava de três em três degraus. Meu coração parecia querer pular de uma vez e me abandonar.
Lá embaixo cheguei e disparei a correr para o estacionamento do Bloco B, onde Julia morava. Estava completamente sem fôlego quando a avistei. Estava no banco de trás do carro dos seus pais. O carro estava saindo e ela pôs em mim os seus olhos e, enquanto o carro se afastava, sem uma única palavra ou aceno de adeus, desapareceu da minha vida.

Em 9 de fevereiro do mesmo ano, eu completara 14 anos. Estava animado, pois antes dos 18, sempre achamos bom ficar mais velhos. Além disso, era sábado e eu não tinha que ir à aula.
Eu mal tinha tomado café quando percebi pela janela que havia novos vizinhos no apartamento do bloco de frente, ocupando o imóvel que antes pertencia a uma senhora idosa e seu gato. Da janela da nossa sala, era possível ver a sala deles, e vi um casal entrando, com uma criança de colo e uma garota muito branca, com longos cabelos negros. Ela usava um vestido florido e chamou minha atenção. Logo desapareceu no corredor, e torci inesperadamente para que ocupasse o quarto cuja janela ficava de frente para a minha. Segui até a minha cama e vi a garota abrindo o guarda-roupas e transferindo suas vestes de uma mochila surrada para ele.
Pelos próximos dias, eu sempre espiava discretamente seus movimentos. Abria uma pequena brecha na cortina do meu quarto e a observava. Minha intenção na época era capturá-la trocando de roupa, mas ela não se descuidava e sempre fechava a cortina antes de fazer isso.
No final do mês, comprei um binóculo. E me assustei ao usá-lo pela primeira vez. Pude ver seu rosto de perto. Tinha olhos escuros como apenas a completa ausência de luz pode ser. E seus cabelos eram sedosos, sua pele macia e impecável, seu nariz afilado e a boca vermelha como se estivesse usando batom. Era linda aquela garota!
Continuei a espiá-la dia após dia e, apenas cerca de dois meses após a mudança, pude encontrá-la pessoalmente. Uma coincidência nos uniu no mesmo ônibus indo para casa. Ela usava uma calça jeans e blusa de alça, seus cabelos estavam soltos e pude admirá-la, de três cadeiras atrás. Descemos, obviamente, no mesmo ponto. Caminhei logo atrás dela, mais devagar do que o habitual, mas sem ter a intenção de desgrudar meus olhos um instante. Quando passamos pelo portão do condomínio e ela percebeu que mais alguém entrara com ela, virou sua cabeça e me viu pela primeira vez. Mas logo seguiu adiante para seu apartamento.
Estando eu em casa, a espiava. Caso ela não estivesse, eu ficava de olho para não perder nenhum momento. Era linda. Seus movimentos eram graciosos e eu me regojizava quando ela sorria animada em alguma conversa.
Um certo dia, ela não estava em casa e eu precisava estudar, entao me deitei na cama para ler o livro de geografia. Quando dei por mim, ela estava no quarto. Instintivamente, apanhei o binóculo na cabeceira e a olhei. Acabei esquecendo a discrição e fui pego em flagrante. Ela olhou pela janela distraidamente e me viu. Baixei imediatamente o binóculo e ela estava me observando. Rapidamente sumi da janela.
Passei um dia afastado e voltei a usar a cortina. Mas volta e meia eu a pegava olhando para a minha janela.
O tempo foi passando. Poucas foram as vezes em que nossos horários coincidiram. Algumas a vi no carro dos pais e ela apenas me olhava. Outras eu não tive coragem de me aproximar e me afastava sem ser percebido.
Quando eu não a estava observando, estava pensando nela. Sonhava em tocar a campainha do seu apartamento e me apresentar. Sonhava com a gente namorando. E até mesmo casando. Seus pais pareciam simpáticos e achei que iam gostar dos meus.

Enfim, na véspera do fatídico dia de agosto, antes de dormir, fui dar a espiada básica e ela estava na janela com a luz do quarto acesa. Não sei como ela sabia que eu estava ali, mas pegou um caderno e rabiscou algo e então segurou de frente para a janela, para que eu pudesse ler. Estava escrito:
JULIA
Era esse o seu nome. Julia... Aquela que eu pensava que seria minha futura esposa. Então ela apagou a luz e se deitou.
No dia seguinte, quando cheguei do colégio e almocei, vislumbrei o quarto vazio.
E senti escapar por entre meus dedos os sedosos e lisos cabelos negros da alvíssima Julia. Aquele olhar quando se afastou no banco de trás do carro... eu nunca pude esquecer.
Guardei num cantinho especial da minha memória aqueles dias especiais de 96, em que admirei a bela Julia e inocentemente sonhei com um futuro ao seu lado. Nunca mais a vi, mas jamais a esquecerei.

Essa foi uma das histórias doces da minha adolescência.

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